Sobre décadas e gerações — Cultura e anos 80

Kira Yagami
9 min readJul 10, 2019

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Por algum motivo especial os anos 80 tem um lugarzinho no coração de algumas pessoas, quase sempre pessoas que não viveram aquele tempo e talvez isso contribua com a nostalgia de focar só nas coisas boas e ignorar certas dificuldades da vida, como seria o caso dos aparatos tecnológicos. Há ainda a questão de que os anos 80 são glamourizados em se tratando de EUA ou Europa, a América Latina tem sua década oitentista um pouco diferente.

Mas porque tanto drama sobre os anos 80 em si, porque não os anos 70 ou 90? Geralmente as respostas dessas perguntas vão repousar sobre os títulos do cinema ou os antigos vídeo-games, podendo também versar sobre as músicas ou o feeling político que aflorava nas sociedades, há até quem lembre da década de 80 como boa porque esta traz os primeiros motores turbo da Formula 1, tem maluco para tudo…

Os anos 80 são um caldo cultural, uma mistura de muitos acontecimentos que refletem de uma só vez em cima do início de uma nova geração que atingiria a maioridade pelo início dos anos 80, então falamos sobre pessoas nascidas cerca de 20 anos atrás. Os anos 60 ainda pertencem aos baby boomers, mas estes que dão origem a dita geração X, dos nascidos depois de 1964 e claro que esse número entra aqui como marco histórico e não factual, já que não quer dizer que qualquer sujeito nascido em 1963 ainda seja baby boomer.

64 é um ano e tanto para a história do mundo, além do óbvio golpe civil-militar patrocinado pela CIA, Lyndon Johnson assinava o ato dos direitos civis e a onda rebelde crescia por todo os Estados Unidos, o movimento negro com os panteras negras, o feminismo atingia sua segunda onda, com a pílula anticoncepcional as mulheres tinham a liberdade de decidir sobre sua gravidez e não mais estar refém de uma sociedade patriarcal que as utilizava como donas de casa. Durante essa época ainda havia o movimento Hippie e os dizeres sobre “Make love, not war”, a própria guerra do Vietnã é uma (das muitas) manchas na história americana não só porque foi perdida para um minúsculo e aparentemente inofensivo país, mas porque os americanos a perderam dentro de casa, para sua própria população.

Era curioso como essas ideias e políticas tinham pouca penetração em alguns países europeus, no que tange ao alcance mundial, muitos dos países viviam sob ditaduras que não viam com bons olhos esse tanto de rebeldia, a Inglaterra foi um dos poucos países que provou o gosto da cultura americana mas antes também os havia feito provar de seu próprio rock ‘n roll com pitadas de sotaque inglês em “I want to hold your hand”. A Europa parecia estar blindada contra culturas rebeldes americanas, os governos funcionavam como peneiras que separavam a “boa” da “má” cultura. Os americanos agiam como uma grande torre de rádio que emanava cultura para demais receptores, tudo era americano, feito pelos americanos e decidido pelos americanos, salvo países sobre a cortina de ferro que tinham suas próprias ditaduras que geralmente entendiam conteúdo americano como algo ruim, sendo assim Berlim Oriental demoraria até entender a rebeldia nascente.

Os anos 60 preparam todo um terreno que vai ser palco de um grande show dos anos 70, o movimento Hippie tem seu auge no woodstock, no meio da lama, da sujeira, do amor, das drogas e da contracultura.

Antes quando eu lia sobre os anos 70 eu ficava um pouco triste porque minhas bandas preferidas muitas são dessa época, minhas músicas preferidas idem, mas os anos 70 não pareciam legais como eram os anos 80 e eu só entendi depois de pensar muito sobre que todas as coisas estão intimamente interligadas.

Se os anos 80 fossem um rolê de 10 anos, os anos 70 seriam o pré, que duraria também 10 anos ou quase.

Os anos 60 versam sobre as pluralidades sociais, o feminismo, o racismo, o patriotismo, a liberdade, tudo isso cabe ao grupo mas também nasce no fim da década de 60 duas coisas que podem não ter exatamente uma ligação mas acabam correspondendo ao mesmo sentimento, o sentimento de Eu, a minha vez, a minha história, os meus problemas e o meu jeito. Pode parecer até um pouco egoísta, mas isso libertaria pessoas de maneiras que os Hippies jamais sonharam, o Do-it-Yourself hoje é febre no youtube, quando se trata de ferramentas, de artesanatos e decorações, mas o DIY é bem mais velho do que se pensa. Dentro da historiografia existe um tipo de pesquisa chamada Micro história e nela nós utilizamos do micro para explicar o macro, é o que eu basicamente adoraria ter feito como TCC mas a vida não é justa com todo mundo.

O DIY e a micro história talvez não se conheçam, mas seriam muito amigos se entrassem num mesmo bar. Veriam o mundo de forma bem semelhante, dando importância não necessariamente ao grupo, mas a si mesmo e utilizando de si para mudar o mundo, porque no fim das contas, é exatamente o que cada geração tenta fazer, mudar o mundo a sua maneira.

Em 70 no Brasil tudo era festa, as classes médias viviam o tão sonhado Brasil do futuro, que desponta na economia e faz obras enormes, o Brasil que joga um futebol encantador e se sagra tricampeão mundial, um Brasil que já perdeu seus movimentos estudantis e não tardaria a massacrar os estudantes revoltosos do Araguaia. Nesse Brasil de Médici a música sofria pesadas censuras e muita paranoia rondava as ruas, esse Brasil não demoraria muito a ruir.

Já no epicentro de cultura mundial, os americanos lidavam com Leonid Brezhnev e seu tesão neo-estalinista, que fazia da União Soviética a ditadura de Stálin que Kruschev havia tentado se distanciar, a China emergia como uma grande possibilidade do futuro, diplomaticamente amiga dos americanos, já não era mais tida como um gigante comunista aliado dos soviéticos, a guerra fria quase se esfriava de vez, mas como os 70 eram um grande preparo ela voltaria com tudo durante os anos 80.

O punk e o disco são duas coisas próprias dos americanos setentistas e o punk inglês é uma das pouquíssimas exceções sobre bandas de punk fora dos EUA durante os anos 70, as boates chegariam no Brasil só em 76 com Nelson Motta e a Dancin’ Days, ou seja, o mundo passou cerca de dez anos aprendendo muito bem o que deveriam fazer em seguida. A crise do Petróleo ainda contribuía com uma pitada de melancolia, que o punk aproveitaria muito bem e de onde surgiria coisas com pegadas mais góticas e tristes, mas que ainda falam sobre si e suas subculturas.

Se cultura é o tal conjunto de práticas e crenças, o termo subcultura veio explicando que dentro da sociedade existem muitas minorias culturais e quando o mundo todo começou a se erguer, pensar sobre suas próprias ditaduras, consumir música e cultura que falem sobre ser você mesmo, aprender sobre a liberdade feminina do disco e ainda da segunda onda do feminismo que atinge seu auge em 1980, a bissexualidade e a androginia da música também aparecia, Bowie era algo, não era uma nem um, era Bowie, simplesmente Starman. Durante os anos 70 o mundo senta na cadeirinha da sala de aula e aprende muito bem como emanar cultura, e os governos já não conseguem peneirar boas de más culturas, cultura se torna um caldo só e as grandes economias que despontam no cenário mundial tem toda certeza do que fazer na década seguinte.

Os anos 80 são na verdade um auge de duas décadas ensaiando uma grande explosão de cultura, liberdade, tecnologia e sociedade. É como se fosse a revolução Baby Boomer acontecendo de novo, mas de maneira pessoal em diversas camadas e sem se ater a moralidade ou ao país, os anos 80 também são uma década de DIY mas isso perpassa as subculturas já criadas durante os anos 70. A grande antena de rádio chamada EUA agora aprende que também precisa receber o que as menores antenas lhe contam e que são na verdade suas próprias “canções” retrabalhadas e reestruturadas, adaptadas a diversos contextos e significados, sua música, seu cinema, suas histórias, seus contos, sua política, suas armas culturais.

O Japão aprende muito bem e agora a Honda é marca importante vendida na América, os Rádios e Walkmans são todos gravados em “SONY” e a américa se deleita tentando entender como é possível que essa estrutura tão grande seja feita tão miúda pelos japoneses, um toca fitas portátil era tudo que a juventude oitentista precisava. A Apple e a Microsoft davam seus primeiros passos no que ainda seria uma grande revolução tecnológica, a Nintendo mostra que o Japão não seria tão fácil de ser derrotado por uma empresa americana e ganhava da Atari todo o mercado de vídeo-games. Não só com vídeo-games a indústria japonesas se inseria no mercado, é durante os anos 80 que os animes passam a ser amplamente difundidos e a animação Akira é o ápice da década, com temas sobre o fim do mundo e o “No future for You”, o punk japonês ainda molda a sociedade, a juventude japonesa alivia a pressão da sociedade hierárquica com pegas de moto, shows sem roupa e berrando nos microfones, é no meio dos anos 80 que essa cultura punk gera a subcultura dos pegas de carro em estradas montanhosas da emergente e brilhante Tóquio. Sim, velozes e furiosos tem um cadinho de punk, HÁ!

O punk se desfizera em diversas coisas diferentes, na Inglaterra se misturava aos hooligans e o streetpunk tomava a cena, com cantos sobre times e torcidas, se misturava aos jamaicanos e o ska-punk nascia de maneira dançante e debochada, num ritmo animado mas falando sobre todos as vontades escusas de uma minoria vitimada por todo o Império do Sol Nascente e agora tomava a cena, na Escandinávia as bandas faziam covers de quatro caras em jaquetas de couro que cantavam bobagens num som rápido e simples, as discotecas ganhavam bem mais presença das drogas, principalmente sintéticas como ecstasy e a cocaína, o LSD e a maconha já haviam ficado para trás nos anos 60 e durante os anos 70 todo mundo parecia preferir a melancolia da heroína. O punk e o disco também se misturaram nos anos 80, a cor e a rebeldia davam uma cara sintética as músicas também, como Jesus and The Mary Chain e o A-ha, o Hip Hop também marcava seus territórios já que o Rock n Roll havia sido “roubado” dos negros, o dito Old School aparecia e nem fazia ideia de que tomaria os grandes holofotes. Madonna e Michael Jackson deram novos ares ao Disco e o mundo aprendeu o que era Pop, quem eram o Rei e a Rainha do pop.

Até no Brasil os anos 80 trouxeram a rebeldia e o governo militar já parecia um gigante com pernas de barro, o PT é fundado em 1980 em meio as greves do ABC Paulista, os Garotos Podres começam a tocar em 1982 escrachando o que podiam sobre o governo e o jovem Mao (vocalista e líder da banda) viria a se tornar professor de história anos depois. Os festivais de música colocavam a juventude brasileira nas ruas e a cada dia que se passava era mais difícil que os militares se mantivessem no poder.

É nostálgico ler sobre tudo isso, você se sente à vontade e se imagina nos anos 80, como um RPG, outro item oitentista, mas os anos 80 também tem seu lado ruim.

A segunda Guerra Fria e a dita “Armadilha de Urso” quando a URSS entra em guerra com o Afeganistão, no fim da década Reagan vai estar dizendo como venceu a Guerra Fria e Gorbachev vai terminar de enterrar, mesmo sem querer, o que restou da já decadente União Soviética, envergonhada por Chernobyl e pela derrota contra os Mujahaddins do Afeganistão. Sim, Rambo 3 tem um pouquinho de realidade, mas bem pouquinho. Nem por isso os EUA estariam a salvo e triunfantes já que uma epidemia global tomava conta de tudo, a AIDS era tida por “ato divino” por muita gente e isso contribui com a negação da homossexualidade, já que no início a doença se manifestou em gays.

Decidi escrever sobre isso quando assisti Stranger Things de novo e me senti compelido a entender os anos 80 em toda sua pluralidade, a explosão das culturas não-americanas ainda leva a globalização, as empresas perdem muito de seu caráter nacional e passam a ser multinacionais a China é a principal peça do quebra-cabeças, mão de obra barata e a possibilidade de amplo pirateamento de objetos. Com toda essa indústria em ebulição, os anos 80 são também lugar do aumento da combatividade dos movimentos ecológicos, o aquecimento global parece agora fazer frente ao holocausto nuclear e as coisas vão escalar bem rápido já que o Rio de Janeiro recebe a Eco 92 em 1992.

Ás vezes alguém reclama quando a ouve falar sobre os anos 80, principalmente com ênfase de pessoas que não viveram na época, mas no fim das contas é durante os anos 80 que as bases da cultura globalizada são decididas e afirmadas, é durante os anos 80 que os pais dos hoje ditos millenials que vão “mudar o mundo” nasceram ou viveram. Ou seja, mais uma vez a geração dominante quer mudar e salvar o mundo e no fim é sobre isso que esse texto fala, sobre como todos nós queremos salvar o mundo a nossa maneira, mostrar nossa cultura, misturar nossas cores e criar de novo uma década de 80, maior, melhor e mais forte.

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Kira Yagami
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Written by Kira Yagami

Tomei um pote de aspirina e fui parar no hospital!

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