Round 6: Funcional, desigual e coreano

Kira Yagami
7 min readOct 2, 2021

Tudo bem que a Coréia do Sul explodiu cinematograficamente falando com Parasita em 2019, mas a Invasão Coreana (Hallyu) já vem criando bases muito sólidas de uma cultura pop e assim, por conseguinte de um softpower sul-coreano, o K-pop é a principal “arma” nessa guerra cultural e isso tem funcionado de forma excepcional para os coreanos. Em resumo, o softpower é a conquista de mentes e corações de outras populações, isto é, a cultura, a música, a língua, os costumes, a culinária, tudo isso é pensado de forma que a Coreia do Sul se torne um país amigável, afável a demais populações, isto é em essência, o softpower. É mais fácil explicar o softpower entendo seu contraponto, o hardpower, isto é, a força militar, econômica sobre outras populações, é como se o softpower fosse uma guerra cultural e o hardpower uma guerra armada, a política de Hallyu é uma das maiores armas culturais que a Ásia já criou, talvez até maior que a animação japonesa.

A Coréia do sul tem uma outra arma mais desconhecida que o K-pop mas igualmente potente: o Dorama. Literalmente vem de “Drama”, entretanto, Doramas começaram a princípio no Japão, por isso a maneira de se chamar, a palavra “drama” em japonês se pronunciaria “do-ra-ma”. Nada mais é que uma novelinha em séries, com ritmos atualizados e inserindo aos poucos o interesse da audiência, o Dorama ajudou o cinema coreano a explodir em 2019 com o Oscar, podemos dizer que o Dorama andou para que o Parasita pudesse correr.

Round 6 é uma série coreana disponibilizada pela Netflix, em 9 episódios e com um roteiro que beira o bobo de tão simples, recheado de clichês, mas que traz boas discussões sociais. O protagonista é um endividado que precisa enfrentar um jogo mortal por uma quantia obscena de dinheiro, em resumo essa frase explica toda a série, mas aqui cabe os detalhes de uma máquina cultural espetacular.

O protagonista é um cara atrapalhado, enrolado com apostas e agiotas, um tipo de malandro, mas que a malandragem já não funciona, quando eu assisti a primeira figura que me veio foi o Seu Madruga, esse devedor, mas gente boa, esse criminoso econômico misturado com gentileza e carinho. Literalmente esse tipo de gente te causa esse acolhimento, você sente pena e raiva ao mesmo tempo e este é o primeiro clichê. Adiciona-se aqui os diversos estereótipos talvez de uma Ásia inteira e não só da Coréia, um valentão violento, uma norte-coreana fechada e quieta, um suposto investidor sem escrúpulos, um imigrante ingênuo e um velho sábio. Todos esses são unidos por uma condição, as dívidas, isto é, todos esses são “criminosos” da economia, são pessoas com as quais o capitalismo não funcionou e que agora se encontram presos e com a vida sob ameaça por um objetivo, um objetivo que vale tudo para alcançar, o dinheiro.

Round 6 é uma analogia ao capitalismo, a Coréia do Sul é uma sociedade capitalista como a maior parte do mundo ocidental, isto é, na Coréia há todo tipo de mal que uma sociedade que utiliza esse modelo pode ter, tem pobreza, dívidas, agiotas, moradores de rua e principalmente, gente disposta a qualquer coisa para entrar no jogo do capitalismo. A série te explica bem todos os backgrounds, todos tem algum motivo válido para estar ali arriscando a própria vida pelo dinheiro, assim como na realidade capitalista, a maioria tem bons motivos para arriscar as vidas todos os dias e aqui cabe tanto o motoboy que arrisca a vida no trânsito quanto o moleque que decide entrar no tráfico, os dois tem bons motivos, os dois sabem que precisam de dinheiro para viver, para apenas existir neste mundo, seja existir bem ou existir mal.

O Jogo reflete bem o mercado de trabalho do capitalismo, as reservas de mercado, a competição desenfreada, cada um ali funciona como um estagiário em regime probatório, e ai voltam os clichês, o que quebra as regras e decide fazer do próprio jeito, o que torce as regras a seu favor, o que quebra as regras mas por um bom motivo e assim por diante, da mesma forma que acontece na nossas vida real, as pessoas são todas pautadas na lógica de maximização de lucros mas nem todo mundo é um robô sem escrúpulos que é capaz de tudo por dinheiro.

Durante a Idade Clássica em lugares como Roma e Grécia as dívidas levavam as pessoas a se tornarem escravas, isto é, a escravidão por dívidas era algo amparado pela lei, pela sociedade como um todo e era plenamente normal que se pagasse as dívidas como escravo e saísse daquela situação e assim caímos na clássica luta de classes, as dívidas sempre existiram e continuaram existindo, a questão é que em Round 6 existe essa volta no tempo, onde o endividado se torna escravo, escravo de um entretenimento mórbido e frio.

A face mais perversa do jogo não é a morte ou a crueldade com que as regras são aplicadas, nem tampouco a ideia de pôr a vida em risco por dinheiro, mas sim o porquê do jogo existir, isso é literalmente mostrado na série, o protagonista aposta em cavalos e no jogo, os endividados são os cavalos que recebem as apostas e aqui por si só já há uma questão sobre a hipocrisia, onde é mais digno de se apostar? Alias, é digno que se aposte nisso?

A maneira com que o jogo é visto me lembra de “Corrida Mortal” com Jason Statham, é o mesmo conceito, é tudo pelo entretenimento de quem paga para assistir um jogo de sobrevivência que ultrapassa a ideia do “reality”. Cabe aqui outra análise, esse dinheiro apostado é claramente uma alusão a desigualdade que o capitalismo gera, enquanto uns tem que matar e morrer pelo dinheiro, outros tem tanto que podem praticamente decidir quem mata e quem morre. Os ricos que são chamados a assistir de um camarote com todos os prazeres possíveis a corrida de ratos que os endividados se encontram, são quase que caricatos, são caras velhos, que fazem piadas ruins, que falam qualquer tipo de coisa fazendo parecer que se trata de algo realmente estudado por eles, são como se fossem os tios de um churrasco, tanto faz quaisquer que sejam os resultados, ou as piadas, ou os argumentos, pode-se comprar qualquer coisa que quiser, pode-se comprar até mesmo quem ria das piadas ruins e concorde com os argumentos absurdos. Na nossa vida real mesmo, um vídeo com vários homens ricos e brancos rindo de supostas “imitações” de um deles, ou seja, não é importante a qualidade das piadas, é importante que o dinheiro esteja lá para que todos os sorrisos sejam de orelha a orelha. O jogo é um contraponto com o capitalismo em toda sua existência, ipsis litteris é dito que o princípio do jogo é que todos sejam iguais, ou seja, é uma redução da vida ao aspecto da meritocracia e tal qual como a sociedade capitalista, os jogos envolvem x habilidade, pouco importa se você é bom e y, os jogos serem todos literais brincadeiras de criança é a prova de que se trata de algo que todos tiveram contato, como se isso legitimasse o lugar de largada dessa corrida macabra.

No final da Segunda Guerra, a Coreia foi dividida entre capitalistas e socialistas havendo assim a divisão entre norte socialista e sul capitalista, mas diferente da Europa e de Berlim, onde todos os holofotes estavam e as duas potências da Guerra Fria faziam o melhor que podiam para mostrar qual era o melhor modelo de sociedade, as Coreias simplesmente foram golpeadas e largadas em seus governos, desde que seguissem cada qual seu modelo de sociedade, pouco importava se a democracia existia. É bem conhecida a história e a situação atual da Coreia do Norte, com uma linhagem de líderes que simplesmente se perpetuam no poder e não há o menor espaço para o individualismo do voto democrático. A Coreia do Sul por outro lado conta outro tipo de história, uma história de Tigres Asiáticos, de grandes multinacionais como a Hyundai e do poderio econômico, da volta por cima dada, de um país destruído pela guerra até um exemplo de potência capitalista asiática, mas essa história bonita é baseada numa ditadura violenta e logo depois por seguidos golpes militares, a questão aqui é que o Hallyu escolhe muito bem o que contar e o que fingir que não aconteceu, a Ditadura sul-coreana fez a economia decolar e assim por conseguinte gera a desigualdade econômica, isto é, o socialismo e o capitalismo geram mazelas sociais, geram fome, guerra, desespero, geram gente disposta a arriscar a vida, matar e morrer em troca de dinheiro, esse texto não pretende defender quaisquer Coreias que sejam, mas salientar que a desigualdade pode ser criada de diversas formas. Mais uma vez, é um roteiro bobo e cheio de clichês, mas que carrega consigo uma discussão necessária e urgente num mundo onde a desigualdade aumenta cada dia mais.

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Kira Yagami

ENFJ, Professor de história, baterista sem foco, Sage nas horas vagas.